Kim-Hye-Sook |
08 de janeiro de 2012
Ela tinha 13 anos quando chegou. E por mais 28 viveu um processo kafkiano de se ver confinada em um campo de concentração sem ter ideia do porquê. Só muito mais tarde soube qual fora seu veredicto: yeon-jwa-je, ou seja, culpa por associação. O avô havia fugido para a Coreia do Sul e o governo da Coreia do Norte decidiu colocar a família dele inteira na prisão, por toda a vida. Ou quase.
Kim Hye-sook é um raro exemplo de sobrevivente de um regime repressivo que ela chama de inferno. A norte-coreana tem sido fonte dos serviços de inteligência sul-coreanos e de outros países para que se entenda a máquina opressiva de Pyongyang. Na ONU, ela também relatou as violações de direitos humanos no seu país natal e vem sendo apoiada por uma rede de ONGs internacionais que inclui a brasileira Conectas.
As estimativas são de que 200 mil pessoas vivam hoje nesse gulag moderno, dividido em seis campos que as autoridades locais negam existir. "Dois de meus irmãos ainda estão presos lá e ninguém pode ter contato com eles", explicou. "Se um dia souberem dentro do campo que eu fugi para o Ocidente, eles serão executados em público." Para os norte-coreanos, ela está irreconhecível. Kim mudou de identidade e de feições.
Nos últimos anos, o governo brasileiro manteve posição ambígua em relação à Coreia do Norte. Na ONU, a embaixadora no país, Maria Nazareth Farani Azevedo, se absteve na resolução que condenava Pyongyang por violações dos direitos humanos. Alegou que o Brasil estava dando "uma chance" ao regime. Brasília abriu uma embaixada na Coreia do Norte e manteve a tese de que o diálogo seria o melhor caminho para reduzir a tensão no país. Há um mundo separando a lógica da diplomacia e os relatos de Kim.
Em 1974, ela, os três irmãos e os pais foram levados para o Campo 18, na Província de Pyongan. Tratava-se de Buk chang, prisão administrada pelo Ministério do Interior que ainda existe com o nome de Gwalliso 18, Colônia Penal 18. Cerca de 20 mil prisioneiros vivem no local, considerado um dos mais cruéis do sistema.
Todos, inclusive as crianças, eram obrigados a trabalhar. Seu pai logo morreria em uma mina de carvão. Um acidente. O que a impressionava eram os assassinatos nada acidentais. "Um dia antes da execução, guardas anunciavam a todos o que iria ocorrer e éramos obrigados a assistir à morte dos prisioneiros, muitos deles amigos nossos", contou. A cada pessoa morta, os condenados tinham de gritar: "Em nome do povo, liquidaremos os contrarrevolucionários". Um palco era montado à beira de um rio e os corpos jogados na água.
Jamil Chade/AE: Kim-Hye-Sook e o mapa que desenhou do campo de prisioneiros onde passou 28 anos |
Cenas de humilhação eram tão constantes quanto. Os guardas ordenavam que a pessoa ficasse de joelhos e abrisse a boca. Colocavam então excrementos de animais e a faziam engolir. "Isso ocorreu comigo três vezes", contou Kim. Os prisioneiros ainda eram obrigados a recitar elogios ao Grande Líder todos os dias, cujos versos ela ainda sabe de cor. Fazia parte das aulas decorar a árvore genealógica da família que controla o poder.
A população carcerária era formada por agricultores, políticos de oposição, jornalistas e até esportistas que teriam envergonhado a nação em eventos no exterior. O isolamento em relação ao resto do mundo, total. Não havia rádio nem eletricidade.